Existem muitos exemplos onde o direito penal incide na esfera civil, como por exemplo a prisão em caso de inadimplemento de prestação alimentícia ou quando há esbulho ou turbação de posse que normalmente é acompanhada pelo crime de invasão de domicilio ou ainda o crime de dano patrimonial. Neste último caso quase sempre as pessoas recorrem a esfera civil para o ressarcimento do dano, e deixam de registrar Boletim de Ocorrência para dar inicio a Ação Penal, que no caso é de natureza privada, ou seja, a própria vítima deve representar.

Pois bem, o que poucos sabem é que na relação particular de locação de imóveis também há a incidência do direito penal.

É que a Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91) prevê nos artigos 43 e 44 infrações penais nas condutas lá previstas, os quais transcreveremos no seu texto literal:

Art. 43. Constitui contravenção penal, punível com prisão simples de cinco dias a seis meses ou multa de três a doze meses do valor do último aluguel atualizado em favor do locatário:

I – exigir, por motivo de locação ou sublocação, quantia ou valor além do aluguel e encargos permitidos;

II – exigir, por motivo de locação ou sublocação mais de uma modalidade de garantia num mesmo contrato de locação;

II – cobrar antecipadamente o aluguel, salvo a hipótese do art.42 e da locação por temporada.

Neste artigo, as causas que ensejam a ação penal é: (I) exigência de quantia ou valor que não estão previstos no contrato de aluguel, ou que são considerados taxas não obrigatórias, por exemplo taxa de deslocamento do corretor de imóveis, taxa de impressão do contrato, e outros.

Também é previsto (II) como contravenção a exigência de mais de uma modalidade de garantia, por exemplo: indicação de bem imóvel penhorável e fiança, ou fiador e depósito de garantia em espécie.

Este tipo de contravenção é relativamente comum nos contratos de aluguel, onde muitas vezes é exigido do locatário mais de um tipo de garantia, o que é vedado pelo art. 43, II da Lei do Inquilinato.

Já no inciso (III) está a vedação de cobrar o aluguel de foram antecipada, antes do vencimento. Veja bem que a contravenção proíbe a cobrança antes do vencimento acordado no contrato. Nada impede que se cobre antecipadamente o aluguel no início de cada mês, lo como é de certa maneira, comum.

Como defensor do direito penal mínimo, a minha posição é que esta previsão normativa além de inócua, pois a vítima pode se valer do processo civil para resolver o conflito, da mesma forma é também inaplicável, pois de raríssima propositura na esfera criminal. Particularmente, eu nunca vi uma ação penal que tratasse desses ilícitos.

Cumpre ressaltar que contravenção penal não é crime, sendo que a primeira é mero ato infracional de menor potencial ofensivo, ou seja baixíssima lesividade, que na prática acaba quase sempre incorrendo ou em transação penal ou em suspensão condicional do processo, já que o rito adotado para o processamento é o da Lei 9.099/95, o famoso Jecrim.

A própria multa prevista no artigo da lei, traz um caráter descriminalizante. pois é preferível cobrar a mesma na esfera cível através de uma dissolução contratual, do que representar na esfera penal onde, na prática beneficia muito mais contraventor, já que a sanção penal imposta é risível.

Já no art. 44 da mesma lei, o conteúdo da norma é um pouco diferente, pois lá a ação é pública incondicionada, ou seja, de  competência específica do Ministério Público, mas na prática segue o mesmo rito processual, culminando nas mesmas medidas previstas no Jecrim.

O artigo prevê o seguinte:

Art. 44 – Constitui crime de ação pública, punível com de tenção de três meses a um ano, que poderá ser substituída pela prestação de serviços à comunidade:

I – recusar-se o locador ou sublocador, nas habitações coletivas multifamiliares, a fornecer recibo discriminado de aluguel e encargos;

II – deixar o retomante, dentro de cento e oitenta dias após a entrega do imóvel, no caso do inciso III do art. 47, de usá-lo para o fim declarado ou, usando-o, não o fizer pelo prazo mínimo de um ano;

III – não iniciar o proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário, nos casos do art.9ª, inciso IV do art.9ª, inciso IV do art. 47, inciso I do art. 52 e inciso II do art. 53, a demolição ou a reparação do imóvel, dentro de sessenta dias contados da sua entrega;

IV- executar o despejo com inobservância do disposto no § 2ª do art. 65.

Parágrafo único. Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas neste artigo, poderá o prejudicado reclamar, em processo próprio, multa equivalente a um mínimo de doze e um máximo de 24 meses do valor do último aluguel atualizado ou do que esteja sendo cobrado no novo locatário, se realugado o imóvel.

Mais uma vez o texto da lei não deixa dúvida quanto a desnecessidade de trazer a matéria para a esfera penal, onde a eventual punição, por certo não trará satisfação à vítima e tão pouco acarretará maiores prejuízos ao agente delitivo, já que na prática ou se fará transação penal ou o processo será suspenso condicionalmente, e ainda que a pena fosse realmente convertida em prisão, a mesma iniciaria no regime aberto e acabaria sendo substituída por restritivas de direito, como serviço comunitário.

De novo, em 10 anos de advocacia criminal nunca vi ninguém ser acusado e responder processo por causa destas infrações previstas na Lei do Inquilinato, pois na grande maioria das vezes as partes resolvem o conflito na esfera civil.

Quanto as infrações previstas no art.44, o inciso (I) traz a possibilidade de punição penal no caso em que o locador deixe propositalmente de fornecer recibo discriminado de aluguel e encargos a locatários multifamiliares. Um exemplo perfeito e o único que me ocorre no momento é do locador proprietários de um prédio de apartamentos que deixa de enviar o recibo de aluguel, taxas de condomínio, e encargos comuns do prédio aos condôminos, e mesmo assim os cobras através de boletos, sem dar a efetiva prestação de contas.

O inciso (II) é um pouco mais complexo, pois traz a criminalização do uso indevido do imóvel pelo locador/proprietário, após este ter retomado o mesmo antecipadamente para um uso exclusivo. O exemplo reside quando o locador retoma o imóvel para sua própria moradia, e acaba vendendo o mesmo ou alugando novamente.

Na minha opinião tal tipo penal é esdruxulo, primeiro pois limita ostensivamente o direito de propriedade do locador, ora se o mesmo cumpriu os requisitos contratuais de retomada antecipada do imóvel, tais como notificação com prazo para desocupação e pagamento da multa avençada, por que criminalizar o uso posterior de um imóvel de sua propriedade? E ainda que fosse um ilícito, não seria de natureza penal, pois as partes sempre podem combater na seara do processo civil.

No aso do inciso (III) o exemplo clássico seria quando o locatário entrega o imóvel para o locador para que esse reforme ou faça a demolição de parte ou da totalidade o mesmo, e deixa de iniciar as obra no prazo de 60 dias. Ora, mais uma vez a incidência do direito penal é estranha, pois em caso de atraso ou inobservância contratual, as partes se servem do direito civil e processual civil. Quem é que vai perder tempo e qualidade de vida pelo stress de mover uma ação penal em um caso desta natureza? Nunca vi ninguém fazer isso!

Quanto o inciso (IV) esse sim pode fazer mais sentido em relação a repercussão penal, pois trata-se de ação de despejo em desconformidade com a lei. É sabido que muitas vezes o locador possa usar meios vistos como criminosos para a realização do despejo, como uso indevido de força e coação. Neste caso, a criminalização da inobservância do procedimento de despejo, para mim faz sentido.

Por último, o parágrafo único fala traz a possibilidade da cobrança de uma multa em caso de incidência de quaisquer dos “crimes” previstos no art. 44 e seus incisos. Trata-se de norma que em sua essência despenaliza os crimes previstos, pois remete a esfera civil a possibilidade de cobrança desta multa em qualquer um dos casos previstos, sem precisar passar pela esfera penal.

Na prática poderia ser intentada uma ação civil rescisória do contrato de locação com a cobrança da multa prevista no dispositivo legal, construindo no processo a prova cabível, sem precisar passar pelo desconforto do processo penal. Sim, o processo penal sempre é um desconforto inclusive para a vítima.

Os artigos 43 e 44 da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato) é uma daquelas inconsistências que presenciamos todos os dias no Direito Brasileiro. São dispositivos que muito bem poderiam ter exclusivamente natureza civil, mas que por algum motivo, (talvez aparência coercitiva) é de natureza penal, o que se mostra completamente desnecessário.

É mais uma daquelas normas que deveriam ser revogadas, ou transformadas para que tenha uma maior eficácia, eis que na esfera penal é que não terão.

O Direito Penal é outra coisa, tem natureza de urgência, de gravidade, de vingança estatal motivada por um dano quase que irreparável, como é no caso dos crimes contra a pessoa. Quando o Direito Penal é utilizado para reparação de danos materiais de natureza privada, onde estariam muito bem assistidas pela esfera civil, acaba sendo mais uma amostra do quão falha é a nossa politica criminal e o nosso senso de justiça.

Espero sinceramente que um dia o nosso direito penal seja de fato modernizado, mas sucumbo à realidade de que isso é algo profundamente improvável.