Em decisão de 188 páginas, a juíza federal Julie Robinson considerou inaceitável a “prática sistemática” de um grupo de procuradores federais do Kansas, nos Estados Unidos, de ouvir conversas gravadas de presos, em uma prisão privada do estado, com seus advogados de defesa.
Imagem de prisão privada nos EUA
A decisão implica possível anulação de pelo menos 110 condenações. Em todos os casos, a Justiça vai julgar se os procuradores violaram a Constituição, por não respeitar o privilégio da confidencialidade das comunicações entre clientes e advogados.
A juíza também condenou a Procuradoria local por desacato ao juízo, por “declarações falsas, ofuscações e falta de cooperação”, nos depoimentos dos procuradores a um investigador e à corte, durante três anos de investigações.
A juíza disse, em sua decisão, que o grupo de procuradores investigados desobedeceu a ordens de preservar provas e de entregar documentos ao investigador especial, nomeado pela corte. Isso vai dificultar a análise de muitos dos casos.
Mas, nesses casos, a justiça poderá aceitar declarações juramentadas dos advogados de defesa, informando as datas e horários que se comunicaram por telefone com seus clientes presos.
A magistrada disse ainda que vai impor penalidades monetárias ao governo e determinar que cubram as despesas da Defensoria Pública federal em julgamentos que estavam comprometidos. Ficou claro, nas investigações, que os procuradores usavam o que ouviam nas conversas gravadas contra o réu, nos julgamentos.
Segundo a decisão, as investigações revelaram que, de 2010 a 2017, os procuradores federais acessaram 1.429 conversações telefônicas entre os presos e seus advogados. E viram vídeos gravados por câmeras de segurança da prisão, na sala de reunião dos presos com os advogados.
A prática foi descoberta em 2017, quando uma procuradora federal afirmou, durante um julgamento, que tinha prova das acusações que fazia contra o réu –e a prova era a gravação por vídeo da conversa do réu com seu advogado, dentro da prisão.
A confissão impensada da procuradora disparou a suspeita dos defensores públicos de que essa poderia ser uma prática sistemática dos procuradores federais que atuam no estado. Ao levarem a suspeita à juíza, ela nomeou um investigador especial independente para investigar o caso.
O investigador obteve, entre outras provas, notas escritas de outra procuradora, que registraram a escuta de conversas telefônicas entre uma presa acusada de fraude e seus advogados.
As notas incluíam discussões sobre estratégia para o julgamento, negociação de plea bargain, avaliação do risco-benefício de ir a julgamento versus plea bargain e estimativas de sentenças.
A advogada da presa depôs, nas investigações, que a procuradora parecia saber qual era a maior pretensão da ré em uma negociação de plea bargain: sair da prisão antes do ex-marido (que também respondia o mesmo processo), para garantir que teria a oportunidade de recuperar –ela, não ele– a custódia do filho do casal.
E a proposta da procuradora atendeu exatamente o que a ré pretendia: ela sairia da prisão antes do ex-marido dela. Ao ser interrogada pela juíza, a procuradora disse que não ouviu as conversas entre a ré e sua advogada. A juíza, que já conhecia a história, disse apenas que ela era mentirosa.
Antes mesmo da conclusão das investigações, três presos de Kansas já tiveram suas sentenças revogadas e as denúncias contra eles extintas. No caso de um traficante de drogas, que fora sentenciado a 35 anos de prisão, a sentença foi comutada pelo tempo cumprido de prisão. E o réu foi libertado.
Nos EUA, as conversações entre advogados e clientes são definidas como um “privilégio sacrossanto”. Há uma exceção apenas para o caso de o réu (ou o advogado) contar as conversas para um terceiro –essa terceira parte poderá revelá-las em depoimento ou testemunho.
É uma prática comum nos EUA as prisões gravarem as conversas telefônicas dos presos. Na prisão privada de Kansas, se faz isso mesmo que o advogado notifique que a conversa telefônica é privada.
Alguns procuradores tentaram justificar a prática com o argumento de que os advogados sabiam que as conversas telefônicas eram gravadas e, por isso, o sistema não tinha a obrigação de alertá-los.
Mas esse argumento não convenceu a juíza, que entendeu que os procuradores não tinham um “propósito legítimo” para acessar as conversas telefônicas dos presos, porque sabiam muito bem que, nessas ligações telefônicas, haveria comunicações privilegiadas entre os presos e seus advogados.
Para a juíza, a prática era fruto de um departamento da procuradoria caracterizado por “disfunções e intrigas”. Segundo a juíza, era um hábito normal dos procuradores desse departamento gravar as conversas telefônicas com os colegas, escrever notas sobre elas e imprimir e-mails. E, depois, levar tudo para casa, porque uns não confiavam nos outros.
Ficou claro, nas investigações, que nem todos os procuradores adotaram essa prática e que ela contrariou as orientações da direção da Procuradoria, segundo o jornal The Kansas City Star e outras publicações.
Autor: João Ozorio de Melo
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 23 de agosto de 2019.