É inegável que a sociedade brasileira, historicamente é crivada de preconceitos dos mais variados tipos, sendo os mais comuns o racial, o de gênero o social, religioso e contra portadores de algumas doenças.
Ainda que tardiamente e de forma muito tímida, a legislação vem criminalizando certos preconceitos quando externados nas mais variadas formas.
Em 02 de Junho de 2014 foi promulgada a Lei 12.984/2014 que define o crime de discriminação contra portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de AIDS.
O tipo penal veio com o seguinte texto:
Art. 1ª – Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador de HIV e o doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente:
I – recusar, procrastinar, cancelar ou segregar a inscrição ou impedir que permaneça como aluno, em creche ou estabelecimento de ensino qualquer curso ou grau, público ou privado;
Este tipo penal foi pensado para a proteção daqueles que tinham o seu direito a educação tolhido de forma arbitrária, somente por serem portadores de HIV ou estarem doentes de aids.
O objeto de tutela jurídica é o direito a igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Não existe forma culposa já que o crime em questão nasce da vontade deliberada de recusar, procrastinar, cancelar, segregar ou impedir inscrição.
II – negar emprego ou trabalho;
Ainda é relativamente comum, infelizmente, que o portador de HIV seja discriminado em uma seleção de emprego.
Assim como no inciso anterior, o tipo penal não prevê a forma culposa e o objeto jurídico é a proteção do direito a igualdade e da dignidade da pessoa humana.
A lei não faz nenhuma ressalva ou exceção condicionada a tarefa a ser desempenhada pelo portador do vírus ou doente, sendo que para a lei não importa qual seja o cargo, função ou segmento de atuação.
Houve um tempo em que as pessoas portadoras de HIV ou doentes de aids eram impedidas de trabalhar em certos setores como o de saúde e alimentação. Felizmente, ao longo do tempo os Conselhos Profissionais e sindicatos dos setores foram se posicionando a respeito e impedindo a violação do direito ao trabalho destes profissionais.
Não esqueçamos que muitas vezes o preconceito se alimenta do medo e principalmente da ignorância das pessoas, sendo a última no sentido de desconhecimento mesmo.
III – exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego;
Ainda na linha da proteção ao direito de trabalho, o texto do inciso tem a clara intenção de criminalizar a conduta discriminatória de exonerar ou demitir o portador de HIV, apenas pela sua condição de saúde.
Quem lembra do filme Filadélfia, estrelado pelo Denzel Washington e Tom Hanks? A produção cinematográfica conta a história de um advogado que foi demitido da firma de advocacia por ter contraído a doença da aids e ser homossexual. No enredo, este advogado vai a justiça para pedir a devida indenização por demissão discriminatória. É um ótimo filme!
IV – segregar no ambiente de trabalho ou escolar,
Este texto poderia ter sido muito bem integrado aos incisos II e III. Trata-se aqui da criminalização do afastamento compulsório do portador de HIV ou doente de aids do restante das pessoas em um determinado ambiente.
Imagine o bizarro cenário de uma pessoa portadora do vírus ou doente trabalhar ou estudar em um ambiente totalmente isolado dos demais, somente pela sua condição de saúde. Certamente tal ambiente não é aceitável sob nenhuma hipótese.
V – divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids, com o intuito de ofender-lhe a dignidade.
Veja bem que o tipo penal não fala em ofender a honra, mas sim ofender a dignidade, Isto porque não há desonra alguma em ser portador de HIV ou doente de aids, é uma enfermidade e salvo melhor juízo, ninguém fica doente de propósito.
No entanto, o legislador fez muito bem em criminalizar tal conduta, pois infelizmente era prática muito comum até uns anos atrás, e talvez continue sendo de forma velada, a divulgação maldosa da comorbidade do portador de HIV ou aids, como forma de atingir negativamente a sua personalidade.
Tal como as outras condutas enumeradas até aqui, não admite a forma culposa. No caso, o objeto jurídico é mais uma vez a tutela da dignidade humana.
VI – recursar ou retardar atendimento de saúde.
Aqui temos uma conduta muito grave, a sonegação do direito à saúde em detrimento da própria condição de saúde do cidadão.
Não é possível imaginar um mundo onde não tenha acesso a saúde por conta de estar contaminado por HIV ou doente de aids. No entanto, por muito tempo era prática muito comum, pelo próprio medo do profissional de saúde se contaminar, por pura ignorância e medo.
A disseminação da aids, principalmente na década de 1980, trouxe verdadeiro pavor as pessoas, pois não se entendia a doença, não se tinha tratamento para ela e se atribuiu a sua transmissão a determinados grupos de pessoas.
Como dito antes o preconceito nasce principalmente no medo e da ignorância, e aqui não estamos tentando justificar o injustificável, mas é indiscutível que as intolerâncias de qualquer natureza sempre estão hospedadas em pessoas necessariamente ignorantes, ou seja desconhecedoras do objeto do seu preconceito.
Volto a dizer que qualquer tipo de preconceito é indefensável. Manifestar intolerância, desrespeito a outro ser humano em detrimento da sua etnia, orientação de gênero, credo e condição de saúde, é insustentável e jamais deverá ser confundido com liberdade de expressão ou qualquer outro direito individual.
A criminalização de condutas discriminatórias é civilizatório e são bem vindas, ainda mais nos tempos atuais, onde a discrepância entre o razoável e a proteção de direitos individuais anda tão distante.